"O Fascista desistiu de si mesmo"
Essa afirmação da Márcia Tiburi me provocou uma série de reflexões e me levou até cinco, dez, quinze anos atrás. Queria ir fundo na tentativa de compreensão dessa ideia e, para tal, nada melhor do que olhar para os próprios caminhos e vivências.
Desde cedo levo comigo uma curiosidade sobre as pessoas, os costumes, as culturas, os movimentos, as repetições etc. Sou daqueles que observa e acha cômica a rotina, a objetividade com que as pessoas conduzem a vida. A seriedade pra mim sempre foi algo de plástico, como que encenação combinada pela multidão. Achava-me ridículo fazendo o comum e apreciava a loucura de consumar um ato ao mesmo tempo que o ponderava; um corpo e uma mente trabalhando como se fosse um, sem sê-lo.
Esse traço fundamental me conduz a determinadas construções de mundo sob terrenos bem instáveis, transitórios e isso, em algum momento, passou a me incomodar. Estava farto de relativizar as coisas, de tematizar questões, ainda que viesse lá do imo. Queria me livrar da angústia de não conseguir encerrar uma lógica sobre os assuntos, me reconhecer livre para sentir com verdade as emoções, odiar com sinceridade, amar com profundidade.
Pois é assim que interpreto a sentença que inaugurou este texto: as pessoas, assim como eu, chegam a esse momento decisivo de desistir ou não de duvidar, de levar a frente ou não os questionamentos.
Obviamente que desistir parece ser a opção mais simples de escolher - embora não tanto de sustentar. Desistir é a resposta simples ao peso do fado inerente a nossa existência que é o de interpretar já estando dentro de um mundo supostamente bem constituído. Por isso é um desistir de si, pois é desistir daquilo que é mais próprio em nós, daquilo que nos constitui junto ao mundo. É desistir de ser o que e para o que somos.
Estancar a alteridade, a sensibilidade e passar a viver como mais um elemento a funcionar satisfatoriamente dentro desse mundo objetivado é tentador, principalmente se você já possui uma situação "privilegiada" dentro do contexto social. A resposta óbvia e incessantemente cultuada nos meios frequentados nesse contexto é o de preservar-se, fugir ao pensamento de forma a manter um status, uma condição.
Essa atitude perante a experiência é a resposta de quem desistiu de pensar. A condição de enxergar-se fazendo, ponderar o agir, é o que nos coloca livres para praticar a empatia, nos coloca aptos a sermos seres políticos, a praticar uma ética. No entanto, é um fardo. Passaremos uma vida impelidos a este esforço de se a haver com paradoxos, com indeterminações, incompletudes. E se a haver com o outro. Desistir passa a ser um esforço menor que produz uma salvação supostamente perene.
Acredito que Tiburi atribua essa atitude de estancamento do pensamento ao modo de ser fascista pois este trata de justamente rudimentar o mundo de modo a dar conta dele. Uma espécie de sucumbir ao estabelecido por não conseguir dar um passo adiante na complexidade do pensamento. O livre pensamento assusta e coloca uma decisão a tomar. O fascista opta por desistir de singularizar e se apropriar daquilo que é acometido.
Importante esclarecer aqui o que se entende por fascista: usando a própria ideia da Márcia Tiburi, o fascista é aquele que está consumido pelo ódio e age autoritariamente; se mostra incapaz de enxergar o outro, o singular, o diferente de si. Reproduz uma dinâmica de mundo apolítica, baseada numa moral estabelecida, o que o torna incapaz de dar potência aos encontros que se dão na experiência.
Ao desistir de pensar o mundo complexo, desigual em seu resultado, se desiste do outro. Se finda a responsabilidade sobre essa desigualdade e se constrói modos de ser lógicos, duros e engessados. Por isso o autoritarismo, por isso o ódio aflorado, o medo como justificativa para tudo: pois fora da dinâmica do pensamento fascista está o direito do outro, das minorias, daqueles que foram arrasados durante grande parte da história da humanidade.
Foi fundamental olhar para minha própria história para entender o sentido dessa "desistência do pensamento". Em muitos momentos fui impelido a isto, seja por simplesmente acompanhar a ação vigente do mundo, seja por medo de desconstruir modos de ser bem enraizados, seja por nem estarem disponíveis outros possíveis, enfim, compreendi-me muitas vezes nesse momento crítico de me render ao confortável de minha posição estabelecida, de branco, classe média, estudante de colégio particular com acesso a cultura, ao lazer etc. E me rendi em muitos e muitos momentos.
A compreensão do caminho que leva a esse impasse entre desistir ou não de si é interessante para que se ganhe um fôlego em prol do pensamento, do acolhimento da diferença. Aceitar nossa condição de seres em construção, em constante projeção, nos coloca sensíveis ao outro, nos coloca gentis a possibilidade de ceder, a lutar por direitos violados, a encarar as contradições ao invés de desesperar diante delas. Uma outra dimensão, com outros horizontes se apresentam e bancar isso é manter-se vivo.
Sem dúvidas, seguir alimentando o pensamento é a escolha mais atribulada. Tudo fica embaçado, livre demais, faz-nos falta o apoio das distinções, uma ordem que nos oriente e nos dê sobriedade no caminhar. Mas existe pensamento além disso? Existe reflexão aquém da liberdade, da abertura? O processo de aceitação do pensamento é árduo, mas, a rigor, é o processo de aceitação de si e dos outros enquanto ser humano. Penoso, mas caminho sem volta, sobretudo se você consegue desenvolver compaixão pelas pessoas, consegue estabelecer vínculo com elas.
Faça este auto-experimento: você consegue sentir o outro? Consegue ter empatia por ele? Se não, seria interessante você desconstruir seus discursos e voltar a dialogar com si e com o mundo.
quinta-feira, 28 de janeiro de 2016
terça-feira, 19 de janeiro de 2016
A pena como sentimento terapêutico
Já bem intensamente pude sentir, do grave de minhas três décadas, o endurecimento humano. Tive minhas épocas de endurecimento, consequência de minha - hoje perdoada - ignorância. Algumas outras ocasiões o instituí como um direito, legitimado por mim mesmo, julgando ser salutar. Ocorre que no mais de minha turva vida consigo perceber que reajo com certa sensibilidade ao que me vem. Nesse lampejo, há um pormenor que me impele a reflexão e desemboca nesse texto.
Pena. Poucos vocábulos são tão difamados quanto este. Quem o usa é muito reticente. É uma palavra que parece esconder entre suas letras e sons algum menosprezo, certa soberba ou imodéstia. Tanto é que ela é mais comumente dita sem ressalvas apenas como insulto, nos momentos que estamos consumidos pela raiva e compromissados apenas em extravasar. 'Não sinto ódio, sinto pena', dizem. Acontece que há uma dimensão desse sentimento que pode nos conectar mais do que proporcionar distanciamento.
Pois confesso: sinto pena tanto quanto aguenta a vigília. Convivo com ela entre choros e risos, meus e dos outros. Sobretudo atualmente, as redes sociais tem nos colocado cada vez mais em contato com histórias pessoais. Mesmo quando há pouco vínculo afetivo, elas me tocam em seus dramas corriqueiros, suas conquistas ou suas dificuldades, seus imperativos e suas visões de mundo. E, frequentemente, venho sentido pena, dó, é assim que venho interpretando meu afeto.
Não sei se a pena que sinto se aproxima de uma espécie de empatia, ou se a precede, a constitui ou mesmo não diferem. Ocorre que a pena pulsa em mim o outro. Pulsa forte a condição do outro no acidente da vida, no labirinto sem saída do existir, sobretudo pulsa os momentos de plena distração da vivência mais objetiva, quando a certeza alheia quase me convence, quando a veemência é muita. Afinal, penso: 'olha como essa pessoa lida com nossa condição de ter que ser algo'. Estas reflexões e a pena suscitada não me provocam raiva ou incompreensão, me causam solidariedade, me salvam, me ampliam as possibilidades. São doses pesadas de alteridade que me colocam a passar pela angústia sem solidão, pois é algo que todos compartilhamos.
A morte me aflora a pena mais incontrolável. Ou melhor, o morto. Tal qual um ritual, o morto me faz cumprir tudo que uma existência parece demandar: legitimidade ao ser notada. Me coloco eu e o finado, em meio ao nada, e o perdoo, reconheço seu esforço, seu legado, suas escolhas, o peso de sua caminhada. Minha pena transborda em lágrimas quando penso em sua obra material, sua imagem em vida e nos projetos inconcluídos. Com a morte, finda a culpa, no morto e em mim, pois relembro: que autoria ou autonomia temos? Obrigados a viver no indeterminado, constituir significados que sempre necessitarão do outro o mínimo consentimento. A ignorância que pode me causar raiva em vida, me causa pena em morte. 'não deu tempo de percebê-la'.
Talvez a pena, quando refletida, possa ultrapassar seu sentido prosaico e fundar algo muito mais nobre em nós. Valorizo muito esse aspecto da existência, me esforço em rechaçar seu sentido mais negativo. A pena deve nos fazer gostar mais das pessoas, nos aproximar e não servir de justificativa frívola para o endurecimento ou distanciamento. Afinal, ela pode reacender nosso estimulo para a vida. Sentir pena do outro é a possibilidade de sentir pena de si, de perdoar algum insucesso do passado, diminuir a cobrança sobre si, atualizar promessas e reconstruir projetos idealizados. Reconhecer sua condição no outro tende a nos fazer mais leves e prontos para amar.
A pena pode oferecer o questionamento ao invés de vedá-lo. Pode ser muito mais do que cultivar mágoa, empáfia ou indiferença. Senti-la sem medo é o que abre também para enxergá-la na perspectiva da piedade e da compaixão. É um exercício terapêutico.
Pena. Poucos vocábulos são tão difamados quanto este. Quem o usa é muito reticente. É uma palavra que parece esconder entre suas letras e sons algum menosprezo, certa soberba ou imodéstia. Tanto é que ela é mais comumente dita sem ressalvas apenas como insulto, nos momentos que estamos consumidos pela raiva e compromissados apenas em extravasar. 'Não sinto ódio, sinto pena', dizem. Acontece que há uma dimensão desse sentimento que pode nos conectar mais do que proporcionar distanciamento.
Pois confesso: sinto pena tanto quanto aguenta a vigília. Convivo com ela entre choros e risos, meus e dos outros. Sobretudo atualmente, as redes sociais tem nos colocado cada vez mais em contato com histórias pessoais. Mesmo quando há pouco vínculo afetivo, elas me tocam em seus dramas corriqueiros, suas conquistas ou suas dificuldades, seus imperativos e suas visões de mundo. E, frequentemente, venho sentido pena, dó, é assim que venho interpretando meu afeto.
Não sei se a pena que sinto se aproxima de uma espécie de empatia, ou se a precede, a constitui ou mesmo não diferem. Ocorre que a pena pulsa em mim o outro. Pulsa forte a condição do outro no acidente da vida, no labirinto sem saída do existir, sobretudo pulsa os momentos de plena distração da vivência mais objetiva, quando a certeza alheia quase me convence, quando a veemência é muita. Afinal, penso: 'olha como essa pessoa lida com nossa condição de ter que ser algo'. Estas reflexões e a pena suscitada não me provocam raiva ou incompreensão, me causam solidariedade, me salvam, me ampliam as possibilidades. São doses pesadas de alteridade que me colocam a passar pela angústia sem solidão, pois é algo que todos compartilhamos.
A morte me aflora a pena mais incontrolável. Ou melhor, o morto. Tal qual um ritual, o morto me faz cumprir tudo que uma existência parece demandar: legitimidade ao ser notada. Me coloco eu e o finado, em meio ao nada, e o perdoo, reconheço seu esforço, seu legado, suas escolhas, o peso de sua caminhada. Minha pena transborda em lágrimas quando penso em sua obra material, sua imagem em vida e nos projetos inconcluídos. Com a morte, finda a culpa, no morto e em mim, pois relembro: que autoria ou autonomia temos? Obrigados a viver no indeterminado, constituir significados que sempre necessitarão do outro o mínimo consentimento. A ignorância que pode me causar raiva em vida, me causa pena em morte. 'não deu tempo de percebê-la'.
Talvez a pena, quando refletida, possa ultrapassar seu sentido prosaico e fundar algo muito mais nobre em nós. Valorizo muito esse aspecto da existência, me esforço em rechaçar seu sentido mais negativo. A pena deve nos fazer gostar mais das pessoas, nos aproximar e não servir de justificativa frívola para o endurecimento ou distanciamento. Afinal, ela pode reacender nosso estimulo para a vida. Sentir pena do outro é a possibilidade de sentir pena de si, de perdoar algum insucesso do passado, diminuir a cobrança sobre si, atualizar promessas e reconstruir projetos idealizados. Reconhecer sua condição no outro tende a nos fazer mais leves e prontos para amar.
A pena pode oferecer o questionamento ao invés de vedá-lo. Pode ser muito mais do que cultivar mágoa, empáfia ou indiferença. Senti-la sem medo é o que abre também para enxergá-la na perspectiva da piedade e da compaixão. É um exercício terapêutico.
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