terça-feira, 19 de janeiro de 2016

A pena como sentimento terapêutico

Já bem intensamente pude sentir, do grave de minhas três décadas, o endurecimento humano. Tive minhas épocas de endurecimento, consequência de minha - hoje perdoada - ignorância. Algumas outras ocasiões o instituí como um direito, legitimado por mim mesmo, julgando ser salutar. Ocorre que no mais de minha turva vida consigo perceber que reajo com certa sensibilidade ao que me vem. Nesse lampejo, há um pormenor que me impele a reflexão e desemboca nesse texto.

Pena. Poucos vocábulos são tão difamados quanto este. Quem o usa é muito reticente. É uma palavra que parece esconder entre suas letras e sons algum menosprezo, certa soberba ou imodéstia. Tanto é que ela é mais comumente dita sem ressalvas apenas como insulto, nos momentos que estamos consumidos pela raiva e compromissados apenas em extravasar. 'Não sinto ódio, sinto pena', dizem. Acontece que há uma dimensão desse sentimento que pode nos conectar mais do que proporcionar distanciamento.

Pois confesso: sinto pena tanto quanto aguenta a vigília. Convivo com ela entre choros e risos, meus e dos outros. Sobretudo atualmente, as redes sociais tem nos colocado cada vez mais em contato com histórias pessoais. Mesmo quando há pouco vínculo afetivo, elas me tocam em seus dramas corriqueiros, suas conquistas ou suas dificuldades, seus imperativos e suas visões de mundo. E, frequentemente, venho sentido pena, dó, é assim que venho interpretando meu afeto.

Não sei se a pena que sinto se aproxima de uma espécie de empatia, ou se a precede, a constitui ou mesmo não diferem. Ocorre que a pena pulsa em mim o outro. Pulsa forte a condição do outro no acidente da vida, no labirinto sem saída do existir, sobretudo pulsa os momentos de plena distração da vivência mais objetiva, quando a certeza alheia quase me convence, quando a veemência é muita. Afinal, penso: 'olha como essa pessoa lida com nossa condição de ter que ser algo'. Estas reflexões e a pena suscitada não me provocam raiva ou incompreensão, me causam solidariedade, me salvam, me ampliam as possibilidades. São doses pesadas de alteridade que me colocam a passar pela angústia sem solidão, pois é algo que todos compartilhamos.

A morte me aflora a pena mais incontrolável. Ou melhor, o morto. Tal qual um ritual, o morto me faz cumprir tudo que uma existência parece demandar: legitimidade ao ser notada. Me coloco eu e o finado, em meio ao nada, e o perdoo, reconheço seu esforço, seu legado, suas escolhas, o peso de sua caminhada. Minha pena transborda em lágrimas quando penso em sua obra material, sua imagem em vida e nos projetos inconcluídos. Com a morte, finda a culpa, no morto e em mim, pois relembro: que autoria ou autonomia temos? Obrigados a viver no indeterminado, constituir significados que sempre necessitarão do outro o mínimo consentimento. A ignorância que pode me causar raiva em vida, me causa pena em morte. 'não deu tempo de percebê-la'.

Talvez a pena, quando refletida, possa ultrapassar seu sentido prosaico e fundar algo muito mais nobre em nós. Valorizo muito esse aspecto da existência, me esforço em rechaçar seu sentido mais negativo. A pena deve nos fazer gostar mais das pessoas, nos aproximar e não servir de justificativa frívola para o endurecimento ou distanciamento. Afinal, ela pode reacender nosso estimulo para a vida. Sentir pena do outro é a possibilidade de sentir pena de si, de perdoar algum insucesso do passado, diminuir a cobrança sobre si, atualizar promessas e reconstruir projetos idealizados. Reconhecer sua condição no outro tende a nos fazer mais leves e prontos para amar.

A pena pode oferecer o questionamento ao invés de vedá-lo. Pode ser muito mais do que cultivar mágoa, empáfia ou indiferença. Senti-la sem medo é o que abre também para enxergá-la na perspectiva da piedade e da compaixão. É um exercício terapêutico.

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