E foi assim que o tempo apareceu. Foi assim que ele passou. Tudo porque surgiu uma vida. Um sonho despretensioso, um algo 'alguma coisa' que não tinha planos de aparecer. Estava tudo antes tão sereno. Sereno daqueles bem perigosos, bem sem cor. E eis que como uma balde cheio de tinta, o sonho encharcou o nada e me colocou de volta a história. Sabendo-me eu, e sabendo-me poderoso, comecei a sentir uma pontinha de empolgação. Como água que invade o corpo sedento, senti cada extremidade, pulsando. Podia sentir a irritação. Mas junto a ela o prazer de senti-la. Custei a entender o que se passava. Parecia uma imagem vivida no futuro. Uma erupção de elementos familiares para mim, mas não entre si, que se harmonizavam. Um surgir, parecido com aquele que se imagina ser o último surgir. Um surgir seguro, transbordado de certeza. Por mais que não soubesse o que iria acontecer ali, o coração pulsava na cadência da segurança. As paredes não possuíam tijolos ou concreto, apenas a luz de uma absoluta verdade de que eram paredes. Os móveis, suas disposições, eram iguais. Mas todos carregavam suas histórias ali a saltar os olhos. Tinham o tamanho de suas vivências e experiências. Era possível ser excitante aquilo. Era possível estar no comando. Era possível não se afetar com as facticidades ocultas. Era plenamente possível sorrir. E sorri. Sorri muito. Sorri para os outros, como numa infância. E como numa infância, todos estavam a vontade para brincar e jogar. Embora tenha percebido que sorrir também fazia parte do jogo, não me preocupava em saber se isso seria bom ou ruim. Afinal, na minha intuição só havia um comportamento possível, só havia um sentido de expressão de mim. Sorrir era ser. E desprovido de qualquer arma, capa ou truque, fui sendo e fui jogando com minha história. Imaginando no acontecer do que nunca iria acontecer. No que foi dado como bondade para mim e que havia sem relutância rejeitado. Foi aí então que, tal qual o súbito do faiscar, procurei sem querer alguém e achei justamente quem queria. Olhei diretamente pra sua boca e seu sorriso, seus dentes a insinuar a perfeição e seu júbilo explosivo, empurrando as bochechas. Só quis me aproximar e o fiz. Queria descobrir sua fragrância, queria fazer mudar o destino que berrava a mim consumado. fui me chegando e o calor foi me moldando. Fui ganhando corpo, ganhando contornos, ganhando humanidade. Me aproximei definitivamente e sua boca ficou séria. Pude entender a mensagem contida naquela diferença. Ergui meu rosto, toquei seus lábios. A beijei! Pude ver então seus olhos sorrindo, marejados. Que veemência! Pude ver a mim dentro dela! Além de sentir o carinho e a pureza daquele olhar, pude ver em matéria toda minha alegria. Inimaginável sequer supor que toda aquela imensidão de felicidade pudesse ser ocultada, pelo que quer que seja...
...Mas foi. Senti um choque e uma pontada. Senti minha própria traição, senti a lucidez sólida, a presença de um escândalo. O sofrimento coerente ao descortinar de um erro de uma eternidade, vindo a tona. Lembrei do que me fazia morrer a cada dia: de que não podia vê-la dentro de mim! Lembrei que não existia somente euforia e excitação aqui dentro. Lembrei de tudo que além daquelas primeiras sensações, daquele deleite pleno, existia. Agora tudo, além daquilo, existia. E não podia amá-la. Não podia senti-la. E novamente, não pude amá-la e senti-la...
Acordei.
Soubesse eu que viveria intensamente duas vidas, e que as teria vivido igualmente. Soubesse eu que as vidas andam sempre enganando, porém jamais escondendo o que uma espelha noutra. Soubesse mesmo eu que um sonho tem sua própria vontade, Deixaria ele viver por conta própria, e não sonharia em viver outra vida.
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